sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Matar ou Morrer

 

Matar ou Morrer- O Caso Thabata, Bebê Refém (1997)

Houve uma época (principalmente durante as décadas de 1970 e 1980) em que o cinema brasileiro produzia vários filmes do tipo policial, que tinham um público fiel e geravam um bom lucro. Esses filmes tentavam emular os filmes norte-americanos de ação e mostravam policiais brasileiros enfrentando traficantes de drogas e outros tipos de criminosos nas ruas das grandes cidades do Brasil, com direito a muito tiroteio e violência.

A maioria dos filmes deste gênero eram obras ficcionais, embora muitas vezes baseados em algumas situações ou eventos reais. Exemplos disso são os filmes “Ódio” (1977) e “República dos Assassinos” (1979). Algumas obras, entretanto, retratavam casos reais, dramatizando crimes quer tiveram certa repercussão na opinião pública ou a trajetória de alguns criminosos famosos. Um bom exemplo é o filme “Eu matei Lúcio Flávio” (1979), sobre a perseguição e morte do criminoso Lúcio Flávio Villar Lírio. Se alguém quiser saber mais sobre o gênero de filmes policiais no Brasil, deixaria aqui um link para um estudo bastante interessante que trata sobre este tema: https://www.bb.com.br/docs/portal/ccbb/Noastrodocrimeocinemapolicialbrasileiro.pdf

Ódio (1977)
República de Assassinos (1979)
Eu Matei Lúcio Flávio (1979)

Matar ou Morrer é um representante das dramatizações cinematográficas de crimes brasileiros que tiveram grande repercussão na época em que ocorreram. Produzido pela Câmera 1 Cinema e Vídeo e dirigido pelo goiano Clery Cunha (que já havia dirigido um filme policial antes, “O Outro Lado do Crime” em 1978, onde trabalhou com o famoso apresentador e radialista Gil Gomes), o filme retrata o caso da tentativa de sequestro da bebê Thabata Eroles, ocorrido em 1987 na cidade de Mogi das Cruzes.

Clery Cunha
O Outro Lado do Crime (1978)

A tentativa de sequestro, que posteriormente se converteu em tomada de refém, foi levada a cabo por dois nikkeis (descendentes de japoneses). Pascoal Katsumi Ishii e Eiji Ishisaki eram estudantes do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), uma das instituições de ensino superior mais prestigiadas da América Latina, ligada ao Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) da Força Aérea Brasileira, localizada em São José dos Campos, no estado de São Paulo.

Fachada do ITA

Existem duas versões para o caso Thabata. Uma delas apresenta Pascoal e Eiji como dois estudantes inocentes que estavam passando por dificuldades financeiras na época. Para tentar melhorar um pouco sua situação, os dois rapazes teriam começado a realizar contrabando de mercadorias do Paraguai. O contrabando era, supostamente, transportado em ônibus da empresa Transportes e Turismo Eroles Ltda (que chegou a ser uma das maiores empresas do ramo de transporte de passageiros no Brasil, mas passou por uma crise financeira a partir de 2004 e atualmente está extinta) e o esquema todo contava, mais uma vez supostamente, com a conivência de Toninho Eroles, o diretor da empresa e avô de Thabata, que ganhava uma parte dos lucros. Em uma destas viagens de transporte de muamba, Pascoal e Eiji trouxeram alguns computadores para o professor de natação Antônio Aragão, genro de Toninho e pai de Thabata, o qual posteriormente teria se recusado a pagar o combinado pelos equipamentos. Os dois rapazes foram então até a casa da família Eroles buscar seu dinheiro. A situação se complicou e terminou se convertendo em um caso de tomada de refém.


Alguns ônibus da antiga Transporte e Turismo Eroles

A outra versão do caso é a que é apresentada no filme. Nessa versão, Pascoal e Eiji teriam decidido sequestrar Thabata e sua mãe, Lúcia, para pedir um resgate a família. Porém, devido a inexperiência e nervosismo dos rapazes, a situação saiu do controle e terminou com a morte dos dois.

O único fator comum nas duas versões é a presença do Capitão Conte Lopes como o homem que terminou por resolver o caso e matou Pascoal e Eiji.

Roberval Conte Lopes Lima tinha acabado de ser eleito deputado estadual pelo PPB (Partido Progressista Brasileiro, atual PP- Partido Progressista) e sido licenciado do cargo de capitão da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), uma tropa do Comando Geral da Policia Militar de São Paulo. Segundo a uma das versões do caso (aquela que trata sobre contrabando), Conte Lopes foi chamado por Toninho Eroles para resolver a situação e dar um fim nos dois estudantes. Segundo esta versão, Lopes entrou na casa como um trator, invadiu a força o quarto onde os rapazes estavam junto com a criança e executou os dois a sangue frio, justamente no momento em que os dois estavam tentando se entregar pacificamente.

Conte Lopes na época em que era policial da ROTA

A versão apresentada no filme, baseada na versão oficial do caso, é bastante diferente.

Era fevereiro do ano de 1987. Pascoal e Eiji, os quais tinham sido recentemente expulsos do ITA (segundo esta versão do caso), invadiram a casa da família Eroles com o objetivo de sequestrar Thabata e Lúcia e pedir um resgate. Entretanto, os dois rapazes foram vistos por Lúcia, a qual ligou para seu pai. Logo a polícia chegou à casa e os criminosos desesperados se trancaram em um dos quartos com a pequena Thabata, então um bebê de poucos meses.

O caso rapidamente ganhou repercussão e a imprensa começou a transmitir a situação ao vivo. Repórteres muito conhecidos na época como o radialista e apresentador Gil Gomes (que passaria a chamar o ITA de “Instituto de Treinamento de Assassinos”) e Jacinto Figueira Júnior, o famoso “Homem do Sapato Branco” (que, inclusive, faz uma ponta logo no início do filme interpretando a si mesmo a apresentando o caso) deram ampla cobertura ao caso.

Gil Gomes na época do programa "Aqui e Agora" do SBT nos anos 90
Jacinto Figueira Júnior (sentado) e seu icônico sapato branco

Depois de horas de negociações infrutíferas, que teriam envolvido até mesmo a participação de um juiz, um promotor e um bispo, os rapazes seguiam irredutíveis. A família estava desesperada e a situação parecia se encaminhar para um final trágico. É então que chega o capitão Conte Lopes (interpretado por ele mesmo). Após algumas tentativas de negociação e percebendo que os criminosos não iam se entregar, Lopes resolve dar um fim aquela situação. Com a Magnum .44 em punho, adentra o quarto e confronta os rapazes, que terminam mortos.

Após a conclusão do caso, houve duas consequências diretas. Primeiramente, Conte Lopes se tornou uma espécie de celebridade e foi capa de revistas e tema de matérias em vários jornais.


Por outro lado, foi aberto um IPM (Inquérito Policial Militar) pelo comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com o objetivo de investigar a ação do capitão Conte Lopes no caso Thabata. Como Lopes já havia sido diplomado como deputado estadual quando o inquérito se iniciou, o mesmo tinha imunidade parlamentar e somente poderia ser julgado pelas instâncias jurídicas superiores. Entretanto, Lopes abriu mão da imunidade e aceitou ser julgado pelo tribunal militar. Ao final do inquérito, a atuação de Lopes foi vista como exemplar e o mesmo foi inocentado de toda e qualquer acusação. As conclusões do inquérito terminaram por corroborar a versão oficial do caso.

Mas afinal, o que realmente aconteceu? Qual a versão correta dos fatos? Bem, a resposta é simples e um tanto desanimadora: Nunca saberemos! O tempo passou e o caso se tornou uma verdadeira lenda em Mogi das Cruzes. Os fatos se diluíram na memória coletiva e atualmente é impossível saber com exatidão o que realmente ocorreu. Durante a elaboração desta resenha, realizei uma pesquisa e pude levantar algumas informações.

Primeiro, os dois rapazes mantiveram Thabata refém por mais de nove horas. Durante este período, os rapazes se recusaram várias vezes a se render.

Segundo, Conte Lopes apareceu na casa cerca de quatro a cinco horas depois do início da operação e ficou por ali durante muito tempo, conversando com os familiares da criança e com os outros policiais. Ou seja, o então capitão da reserva não invadiu a casa a força e nem mesmo forçou sua participação no caso.

Terceiro, a criança foi levada a um hospital após o resgate e passou por uma cirurgia de emergência para tratar de ferimentos no abdômen e no tórax causados por golpes de um instrumento cortante, possivelmente uma faca ou canivete. Ou seja, um dos rapazes, ou ambos, golpeou a criança com um objeto cortante, talvez na tentativa de matá-la. Isso desmente a versão de dois “estudantes inocentes” e põe em dúvida a ideia de que ambos pretendiam se entregar pacificamente pouco antes de serem mortos por Conte Lopes.

Quarto, os exames de pericia médica e de balística anexado ao IPM comprovaram que ambos os rapazes foram mortos por disparos certeiros na cabeça, disparos estes executados de frente, sendo que cada um dos rapazes recebeu apenas um disparo. Esta informação desmente a versão de que ao menos um deles teria sido executado posteriormente.

Conte Lopes publicou o livro “Matar ou Morrer” em 1994, contando parte de sua trajetória como policial e relatando sua versão do caso Thabata. O livro de Conte Lopes é também uma resposta ao livro “Rota 66”, lançado em 1993 pelo jornalista Caco Barcellos, o qual acusa o ex-capitão de vários crimes, entre os quais tortura e execução de civis. Posteriormente, o livro de Conte Lopes iria dar origem ao filme “Rota Comando” (2009), onde o ex-capitão faz uma pequena participação. Atualmente, Conte Lopes segue na carreira política filiado ao PL (Partido Liberal), tendo sido reeleito nas ultimas eleições em 2022 com 192.454 votos.

Rota Comando (2009)
Conte Lopes "atuando" em Rota Comando

Já Thabata Eroles, a bebê que foi refém de Pascoal e Eiji, acabou falecendo em 18 de março de 2007, em um acidente de trânsito na Via Dutra, aos 20 anos de idade.

Ao fim e ao cabo, Matar ou Morrer é um filme bastante amador, com atores medíocres, sonografia péssima, montagem tosca e que tenta apresentar uma estranha mescla entre documentário e dramatização. Basta dizer que o melhor “ator” do filme é o próprio Conte Lopes, interpretando ele mesmo. O amadorismo é tanto que logo nos primeiros minutos, aparece um microfone na cena em que Jacinto Figueira Júnior aparece apresentando o caso. Com certeza não é nenhuma obra-prima, mas percebe-se que é um filme feito com muita boa vontade e esforço.

Vale a pena dar uma olhada se você for curioso e quiser conferir um típico filme policial brasileiro de baixíssimo orçamento.

 

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