Anaconda
(1997)
Talvez você conheça o conceito de guilty
pleasure (prazer culposo), que se refere a algo que gostamos e sentimos
prazer de apreciar, como um filme, uma música ou um programa de televisão, ao
mesmo tempo em que sabemos que esse nosso objeto de prazer não é visto como
algo relevante ou de qualidade pela maioria das pessoas e pela crítica
especializada. Todo fã de cinema trash conhece essa sensação de prazer culposo,
mesmo que não conheça ou não entenda totalmente esse conceito de guilty
pleasure.
Pois bem, eu tenho vários prazeres culposos, principalmente em relação a filmes trash, mas o meu maior guilty pleasure é, com certeza, Anaconda. Todos que assistiram esse filme sabem que é uma obra classe B, com um roteiro ridículo, atuações muito exageradas e efeitos especiais que transitam entre o inovador e o absurdo. Porém, eu não me importo com nada disso. Eu realmente amo esse filme.
Anaconda já começa enfiando o pé na
jaca: na cena inicial aparece um texto com uma narração em off “explicando” o
que são as anacondas. Essa explicação é um show de besteiras pseudo
cientificas. O filme chega ao absurdo de dizer que as anacondas “não ficam
satisfeitas em apenas matar suas presas”, por isso “regurgitam a presa para
poder matá-la de novo”. Ridículo e hilariante.
Deixando de lado a questão de como é possível matar uma presa duas vezes, vamos aos fatos. As anacondas, também conhecidas como jiboias ou sucuris, são cobras boinae do gênero Eunectes nativas da América do Sul. Conhecidas e temidas devido ao seu grande tamanho, essas cobras não possuem veneno e matam suas presas através de esmagamento, enrolando o corpo da presa com o seu e usando a força de seus músculos para esmagar os ossos da presa. Após a morte da presa, as sucuris abrem a boca ao máximo e engolem a presa inteira. Uma vez terminado esse processo, a cobra busca um lugar tranquilo e seguro para fazer o processo de digestão, o qual, conforme o tamanho da presa devorada, pode durar um longo tempo. Uma vez que durante essa digestão a cobra fica bastante vulnerável e lenta, ela tem um mecanismo de defesa de regurgitar a presa caso se sinta ameaçada, para ficar mais leve e poder fugir rapidamente ou se defender mais facilmente.
Uma das principais razões para que eu gostar
tanto de Anaconda é que o filme se passa no Brasil, como todos que viram o
filme se lembram, e traz uma coleção de atores semi famosos como Jennifer Lopez
em início de carreira e Jon Voight, o pai da Angelina Jolie. Também estão
presentes Owen Wilson, que eu sempre lembro pelos filmes da série “Bater ou
Correr”, Eric Stoltz, famoso por quase ter interpretado o personagem Marty
McFly na saga “De Volta para o Futuro”, Jonathan Hyde de “Jumanji” (1995) e até
mesmo o rapper Ice Cube está presente nesse trem da alegria.
Mas o primeiro ator a aparecer em cena é Danny
Trejo, o eterno Machete, em uma cena muito boa em um barco. Trejo,
consideravelmente mais jovem e menos feio do que de costume, interpreta um
marinheiro sem nome que aparece em tela apavorado e tentando fugir de algum
perigo que o persegue em seu barco, perigo este que o filme não mostra
inicialmente, mesmo que o próprio nome do filme já seja um belíssimo spoiler de
qual seria esse perigo. Totalmente desesperado e vendo que está encurralado no barco,
Trejo sobe no mastro, mas é perseguido até lá e opta por se suicidar com um
tiro na cabeça. Toda essa cena é muito bem filmada e tem um bom uso de câmera,
conseguindo construir um clima de tensão que serve como um preparo para o que
veremos a seguir no filme.
Após essa cena inicial tensa, somos levados até o Hotel Ariaú, onde conheceremos os protagonistas do filme. A inclusão desse hotel nas filmagens é um caso à parte dentro do filme. O Hotel Ariaú Amazon Towers foi, durante os anos 1980 e 1990, um dos hotéis mais luxuosos do Brasil e recebeu milhares de hóspedes, entre eles atores famosos como Arnold Schwarzenegger e Charlton Heston, músicos de renome internacional como a canadense Alanis Morissette, políticos com o ex-presidente americano Jimmy Carter e o rei emérito da Espanha Dom Juan Carlos e membros da alta cúpula financeira mundial como o bilionário Bill Gates, que pagavam muito bem para poder desfrutar de uma temporada no maior hotel da Floresta Amazônica. Localizado às margens do Rio Ariaú, afluente do poderoso Rio Negro, distante 60 km da cidade de Manaus, o Ariaú contava com uma arquitetura totalmente adaptada ao seu entorno florestal, formada por torres de apartamentos, restaurantes, bares e salões de festa e até um heliponto, tudo construído em estruturas sobre as águas do rio e ligadas entre si por longas passarelas de madeira. Uma temporada no Ariaú oferecia a incrível experiência de se estar em meio a maior floresta tropical do mundo ao mesmo tempo em que se podia gozar de todo o luxo e o conforto que um hotel de qualidade internacional costuma oferecer.
Quando Anaconda foi filmado, o Ariaú estava em seu auge e a promoção da imagem do hotel no filme (uma promoção obviamente paga pelo próprio hotel) talvez tenha ajudado a aumentar ainda mais sua fama internacionalmente. Não apenas as cenas iniciais do filme foram rodadas no hotel, mas toda a filmagem foi comandada usando o Ariaú como base e os atores e toda a equipe responsável pelo filme ficaram hospedados no hotel durante todo o trabalho de filmagem. Porém, como sempre costuma acontecer no Brasil, problemas de gestão financeira e uma dívida astronômica acabaram decretando o lento declínio do Ariaú durante os anos 2000. O hotel fechou suas portas oficialmente em 2016 e atualmente sobrevivem apenas suas ruínas apodrecendo lentamente em meio à floresta. De sua época de esplendor restaram apenas lembranças e a imagem do Ariaú nas cenas iniciais de Anaconda para recordar os saudosos do hotel amazônico.
Nessa cena inicial no Hotel Ariaú somos apresentados a Terri Flores (Jennifer Lopez), uma diretora de documentários que está trabalhando junto com o Dr. Steven Cale (Eric Stoltz), um especialista em tribos selvagens. Juntos eles pretendem encontrar a tribo shrishama, que vive isolada no coração da floresta, e produzir um documentário sobre ela. Para ajudá-los nessa tarefa eles contam com uma equipe formada por Danny Rich (Ice Cub), amigo de infância de Flores, a diretora de produção Denise Kalberg (Kari Whurer), o sonoplasta Gary Dixon (Owen Wilson), o arrogante apresentador Warren Westridge (JoNathan Hyde) e o guia Mateo (Vincent Castellanos), que era para ser um personagem brasileiro, mas parece tão brasileiro quanto eu pareço um esquimó.
Com a equipe reunida, a viagem pelo Rio Negro e
através da Amazônia começa. O barco parte do hotel e se embrenha na floresta.
Pouco depois de iniciada a navegação, a equipe encontra um outro barco
supostamente encalhado e resgatam Paul Serone (Jon Voight), um caçador de
cobras.
E é a partir desse momento que começam as maiores patacoadas do filme. Para começar, o personagem de Jon Voight nos brinda com um dos olhares mais vilanescos possíveis de toda a história do cinema, enquanto olha de maneira atravessada para o guia Mateo e faz uma expressão tão exagerada de vilão que torna quase impossível não rir da sua atuação. Logo depois, o caçador de cobras diz que é paraguaio e com isso se torna o segundo personagem do filme menos condizente com a sua nacionalidade. Afinal, quem já ouviu falar de um paraguaio chamado Paul Serone? Parece até que para os produtores de Holywood todo personagem latino tem que ter nome italiano e atuar de maneira exagerada. Porém, em defesa de Jon Voight, ganhador do Oscar de Melhor Ator de 1978 pelo filme “Coming Home”, a sua atuação é quase memorável quando comparada à do guia “brasileiro” Mateo, que tem a expressividade de uma porta.
Seguindo com as idiotices, Paul Serone conta para a equipe de documentaristas que sabe onde encontrar os shrishama. Depois de uma certa relutância inicial, os membros da equipe resolvem confiar em Serone para os guiar até a tribo. Me diverte pensar o que teria acontecido com eles se não tivessem encontrado o barco de Serone encalhado. Aparentemente teriam se dedicado a rastrear inutilmente todo o Rio Negro e quilômetros e quilômetros quadrados de floresta tropical em busca da tribo perdida, pois nem o guia Mateo nem o Dr. Steven parecem ter a menor ideia de onde os tais shrishama vivem. É realmente impressionante a falta de capacidade desses “especialistas”.
No dia seguinte, o apresentador Warren Westridge se dedica a jogar golfe no barco (em uma das cenas que mais me marcou quando assisti esse filme pela primeira vez, ainda uma criança) e a brigar com Danny por causa da música alta. Enquanto os dois se ameaçam mutuamente, Flores e Serone conversam sobre a viagem. Ao que parece, a tal tribo perdida mora “logo ali”, depois de uma curva do rio. Para uma tribo isolada, os shrishama parecem não se esforçar muito para se esconder de forasteiros. Me surpreende que ninguém os tenha encontrado antes.
Porém, a tribo parece ter abandonado o lugar. A
única coisa que ficou foi um totem em formato de cobra esculpido em um tronco
de arvore. E tome mais patacoadas. Serone conta uma lenda sobre os shrishama e
acaba discutindo com o Dr. Steven para ver quem entende mais sobre as tribos
indígenas da região. A discussão é tão ridícula como absurda. Além de não
aportar nada ao filme, só demonstra o total desconhecimento dos roteiristas e
produtores sobre a religião e a mitologia das tribos indígenas da bacia
Amazônia. Embora realmente algumas tribos adorem as sucuris como entidades
protetoras, nenhuma tribo brasileira usa totens como o mostrado no filme,
obviamente baseado nos totens das tribos norte-americanas. Por outro lado, a
lenda contada por Serone menciona “mulheres guerreiras”, um conceito derivado
da mitologia grega e que foi usado para dar nome ao Rio Amazonas, mas que nada
tem a ver com as tribos indígenas da região. Do mesmo modo, a menção a um muro
gigante em plena sela é tão absurda quanto idiota. Para que uma tribo indígena
iria construir um muro em plena floresta amazônica? Ainda mais um muro tão
grande que se poderia seguir por “cinco dias”? Nada disso faz sentido, nem como
fato real nem como lenda. Reconheço que, a primeira vez que vi essa cena fiquei
muito empolgado com o totem e a lenda, mas a medida em que revejo o filme e a
cena em questão percebo o quanto é tudo um despropósito sem objetivo na trama.
A viagem prossegue e durante a noite, enquanto o barco está parado no rio, Denise e Gary resolvem descer até a floresta para gravar alguns sons, embora o que pretendem de verdade é namorar um pouco. No meio da floresta Amazônia á noite! Não é preciso dizer que essa não é a ideia mais brilhante do mundo e o casal quase é morto por um javali, sendo salvos por Serone no último momento. Espera! Um javali? Na Amazônia? Como assim? Os javalis são nativos da Europa, Ásia e Norte da África, mas não da América do Sul. Como esse animal conseguiu chegar na Amazônia e sobreviver em meio a uma floresta tropical, que não é seu habitat natural? Bem, o filme não explica e simplesmente joga um javali no meio da trama e dane-se. É apenas mais uma idiotice do roteiro. Isso sem falar que o javali apresentado no filme é obviamente um animal empalhado, algo que a produção nem sequer se preocupou em esconder.
Após Serone ter salvado Denise e Gary do perigosíssimo animal empalhado, a equipe
começa a confiar um pouco mais nele, mesmo que o caçador continue fazendo a sua
cara exagerada de vilão o tempo todo. É então que um acidente acontece. Uma
corda que estava inexplicavelmente jogada para fora do barco acaba se prendendo
na hélice, o que força o Dr. Stevens a ter de mergulhar para soltá-la. Embora
consiga soltar a hélice, o Dr. Stevens acaba sendo atacado por uma vespa venenosa
que o pica e faz suas vias aéreas incharem, privando-o de oxigênio. Mais uma vez
é Serone que salva o dia fazendo uma traqueotomia de emergência em Stevens.
Entretanto, com o Dr. Stevens muito doente, eles resolvem retornar para a
civilização e buscar ajuda médica. Assim, ficam à mercê de Serone, que indica
uma rota alternativa para que possam retornar mais rápido. Essa rota
alternativa, no entanto, parece estar bloqueada por uma misteriosa barragem
construída com troncos de madeira. Mais uma vez me questiono qual o objetivo de
se construir uma barragem desse tipo em meio a um rio na floresta amazônica. Algumas
pessoas poderiam argumentar que a barreira foi construída para evitar que as
anacondas escapem, mas isso não faz sentido. Uma barragem como aquela não
poderia deter nem mesmo uma cobra verde comum, que dirá uma anaconda.
Serone resolve explodir a barragem e, com a
ajuda de Gary, consegue. Porém, como todos nesse filme parecem ser imbecis,
eles se esquecem de se afastar até uma distância segura da explosão e acabam
tendo o barco atingido por diversos estilhaços e perdem a maior parte de seus
galões de combustível (que, aliás, estavam muito mal amarrados no barco,
diga-se de passagem). A explosão também produz uma chuva de cobras filhotes que
pareciam viver na barragem e Serone mais uma vez nos brinda com sua cara de
malvado e uma frase memorável de tão cafona: “Tão Jovem! Tão letal!”
Após a destruição da barragem, a equipe de documentaristas acaba encontrando outro barco encalhado no rio e decidem explorá-lo em busca de combustível. É então que ocorre o primeiro ataque da anaconda. A infeliz vítima é Mateo, que é atacado, enrolado pela cobra e esmagado contra um tronco. Nesse momento vemos a cobra por primeira vez no filme e, é preciso reconhecer, embora as cenas em CGI tenham envelhecido um pouco mal, as partes com a cobra animatrônica são bastante boas para a época. É também nessa cena no barco encalhado que descobrimos, através de uma foto em um recorte de jornal, que Serone, Mateo e o marinheiro interpretado por Danny Trejo são velhos conhecidos. Aliás, esse barco encalhado é o mesmo barco em que Trejo se suicidou no início do filme. Desse modo, se ainda restavam dúvidas sobre o caráter de Serone, estas são definitivamente dissipadas. Ele é o vilão humano do filme.
Agora, sem combustível, correndo contra o tempo
para salvar Stevens, caçados por uma anaconda gigante e tendo que confiar em
Sarone, os documentaristas estão cada vez mais em sérias dificuldades.
Obviamente inspirado no clássico “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, o primeiro filme blockbuster da história, Anaconda foi dirigido por Luis Llosa e teve um roteiro escrito por Hans Bauer, Jim Cash, Jack Epps Jr e Mark Haskell Smith (que fez a maior parte do trabalho, mas acabou não sendo creditado no filme). Embora não tenha sido o primeiro filme de terror com cobras, Anaconda foi o primeiro a apresentar uma cobra gigante como antagonista, o que com certeza lhe dá um pequeno toque de originalidade.
Com um custo de 45 milhões de dólares, o filme
arrecadou mais de 136 milhões de dólares, ou seja, não foi um fracasso de
bilheteria. Grande parte do orçamento do filme foi gasto nos efeitos especiais,
como CGI e a cobra animatrônica, que na época até podiam ser vistos como
decentes, mas que infelizmente envelheceram bastante mal e hoje causam uma
certa estranheza em espectadores acostumados com filmes mais modernos. Se os efeitos
custaram dinheiro, o cache dos artistas também não deve ter sido muito pequeno.
Embora Jennifer Lopez, Owen Wilson e Kari Whurer estarem em inicio de carreira
e não terem custado tanto, Jon Voight e Jonhatan Hyde já eram atores conhecidos
e devem ter cobrado um bom dinheiro para participar dessa obra surreal. Por outro
lado, Ice Cub já era um cantor famoso e também deve ter exigido uma boa parcela
de dinheiro por sua participação. Entretanto, independente dos valores pagos
aos atores, o que se vê em tela é um show de atuações exageradas e
caricaturescas, que ajudam a dar um clima ainda mais trash ao filme.
Além dos efeitos especiais datados e das atuações exageradas, Anaconda está recheada de cenas absurdas e não intencionalmente engraçadas, como aquela em que Serone consegue dar um salto de quase meio metro estando amarrado a um pilar e sentado no chão, sem nenhum apoio, a cena em que Westridge pula de uma cachoeira para escapar da cobra e ela o abocanha em pleno voo e a clássica cena em que Serone, após ter sido engolido pela cobra em outra cena memorável, é vomitado inteiro e antes de cair no chão dá uma última piscadela para Flores. Isso sem mencionar o fato de que a cobra desse filme emite rugidos ao atacar, algo totalmente irrealista. Enfim, uma coletânea de bizarrices que transitam entre o ridículo e o engraçado.
Com tantos defeitos acumulados, as críticas especializadas destruíram o filme, apontando o fato de o roteiro ser muito simplistas, as atuações serem muito exageradas e o fato de que o filme é uma óbvia cópia de “Tubarão”, porém sem a mesma qualidade do original. Arrecadando muitas críticas e pouquíssimos elogios, Anaconda acabou naufragando e esse naufrágio foi sentido nas continuações, que se converteram em uma série de filmes intragáveis que, na minha opinião, não são dignos de ser classificados nem como sonífero.
Com o passar dos anos, Anaconda se
tornou um legitimo filme cult, amado por muitos fãs, que se dedicaram a manter
viva a lembrança dessa obra tão única em sua própria loucura. Tenho muito orgulho
de ser um fã desse filme trash filmado em terras brasileiras com atores
canastrões que são caçados por uma das nossas feras mais famosas.
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